No quintal, a moça de pele dourada pendura roupa na corda. Os pés molhados transformam em lama o chão de terra batida. O vento seca, suave, o suor de suas coxas. Arrepia-lhe a nuca. Prensa o vestido contra o corpo, revelando curvas voluptuosas.
O velho cancioneiro, reflexivo e só, dedilha uma valsinha em cinco cordas. Concorre com o ruído de um rádio que sussurra sertanejos. Tem os olhos fechados, não se sabe se é de cansaço ou de idade - os olhos se perdem nas rugas morenas de sua pele. Quando a melodia tem um ápice, ele faz uma careta emocionada.
A criança curiosa vem ver na janela de onde vem a canção. Desafina versos com sua vozinha tímida:
"Ai, és tão linda
Rosa silvestre
Dá-me o beijinho
Que prometeste"
Um passarinho pia também.
De súbito ruge um trovão e cala a cantoria. A chuva cai e tudo cessa.
Que pena!
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
quarta-feira, 19 de agosto de 2009
Acidente na Rio Branco
Entrou sério na clínica, apanhou uma revista dessas que só mesmo em sala de espera um sujeito culto se digna a ler e demonstrou uma paciência incompatível com o ambiente. Cerca de 45 minutos se passaram até que fosse atendido. Na intimidade do consultório, o doutor leu e releu sua ficha com um misto de sisudez e espanto .
- Mas a sua saúde é exemplar! Colesterol excelente, pressão estável, leucócitos inalterados... Qual é a razão da visita?
- Eu gostaria de remover o meu braço esquerdo.
O médico coçou a cabeça, tremeu a sobrancelha contraindo um esgar e questionou se não devia ter pedido também uma tomografia, ressonância ou um qualquer desses exames neuropsiquiátricos que avaliam as mazelas do cérebro e pretendem medir a sanidade dos homens. O rapaz era mentecapto, com certeza.
- Explique então, meu jovem. Por que você quer arrancar o braço?
- Esquerdo. - frisou o paciente.
- Sim, esquerdo.
Aos doidos não se contraria a lógica.
- Tem uma tatuagem nele. Muitas lembranças.
Lançou um olhar fugaz para a janela aberta. Um olhar de saudade. O doutor arrepiou-se, temeroso.
- E não seria mais fácil apagar a tatuagem? Há uma série de lugares que fazem este serviço. Eu mesmo não trabalho com dermatologia, mas conheço um especialista...
- Não, não. O senhor não está entendendo. Eu não quero apagar a tatuagem. Eu quero removê-la.
Silêncio no consultório. O doutor pediu uma ambulância pelo telefone, com discrição. O paciente prosseguiu inabalável.
- Quando se apaga alguma coisa tem-se a necessidade de se cobrir com uma outra. É como escrever no caderno, apagar, e ver aquele rastro que fica de que algo um dia foi escrito. Eu não quero cobrir a tatuagem com uma outra. Nem olhar pro meu braço e saber que ali tinha uma tatuagem. Assim como prefiro arrancar a página do caderno, prefiro remover meu braço esquerdo.
- Creio que não posso ajudá-lo. Tem ciência das consequências dessa escolha? Não é algo que se possa alterar. O caderno tem muitas folhas, braço esquerdo só tem um.
- Não vejo grande diferença. Sou destro. Além disso, me contento com um braço mecânico, será como um caderno novo. Tenho dinheiro suficiente. Eu pago.
Ruídos na sala de espera. A recepcionista deu um grito assustado. O sanatório invadiu a sala numa onda branca. O médico movia-se apreensivo, como quem tenta acalmar um cão raivoso mas tem medo de ser mordido.
- Calma - alertou.
- Calma - repetiu o enfermeiro chefe.
O paciente pacientemente levantou-se. Declarou, paciente, não estar louco.
Saiu pela janela, e não pela porta.
- Mas a sua saúde é exemplar! Colesterol excelente, pressão estável, leucócitos inalterados... Qual é a razão da visita?
- Eu gostaria de remover o meu braço esquerdo.
O médico coçou a cabeça, tremeu a sobrancelha contraindo um esgar e questionou se não devia ter pedido também uma tomografia, ressonância ou um qualquer desses exames neuropsiquiátricos que avaliam as mazelas do cérebro e pretendem medir a sanidade dos homens. O rapaz era mentecapto, com certeza.
- Explique então, meu jovem. Por que você quer arrancar o braço?
- Esquerdo. - frisou o paciente.
- Sim, esquerdo.
Aos doidos não se contraria a lógica.
- Tem uma tatuagem nele. Muitas lembranças.
Lançou um olhar fugaz para a janela aberta. Um olhar de saudade. O doutor arrepiou-se, temeroso.
- E não seria mais fácil apagar a tatuagem? Há uma série de lugares que fazem este serviço. Eu mesmo não trabalho com dermatologia, mas conheço um especialista...
- Não, não. O senhor não está entendendo. Eu não quero apagar a tatuagem. Eu quero removê-la.
Silêncio no consultório. O doutor pediu uma ambulância pelo telefone, com discrição. O paciente prosseguiu inabalável.
- Quando se apaga alguma coisa tem-se a necessidade de se cobrir com uma outra. É como escrever no caderno, apagar, e ver aquele rastro que fica de que algo um dia foi escrito. Eu não quero cobrir a tatuagem com uma outra. Nem olhar pro meu braço e saber que ali tinha uma tatuagem. Assim como prefiro arrancar a página do caderno, prefiro remover meu braço esquerdo.
- Creio que não posso ajudá-lo. Tem ciência das consequências dessa escolha? Não é algo que se possa alterar. O caderno tem muitas folhas, braço esquerdo só tem um.
- Não vejo grande diferença. Sou destro. Além disso, me contento com um braço mecânico, será como um caderno novo. Tenho dinheiro suficiente. Eu pago.
Ruídos na sala de espera. A recepcionista deu um grito assustado. O sanatório invadiu a sala numa onda branca. O médico movia-se apreensivo, como quem tenta acalmar um cão raivoso mas tem medo de ser mordido.
- Calma - alertou.
- Calma - repetiu o enfermeiro chefe.
O paciente pacientemente levantou-se. Declarou, paciente, não estar louco.
Saiu pela janela, e não pela porta.
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Monólogo
- Felicidade, fica mais um pouco. Eu passo um café, faço umas torradas. Fica só até o filme terminar, depois eu a levo até a porta.
- ...
- Não quer ficar só essa noite?
- ...
- Você me ouve, Felicidade?
- ...
- Não precisa dessa frieza. Fala comigo. Pode até ir embora, mas me promete que você volta?
- ...
- Promete que você existe?
- ...
- ...
- Não quer ficar só essa noite?
- ...
- Você me ouve, Felicidade?
- ...
- Não precisa dessa frieza. Fala comigo. Pode até ir embora, mas me promete que você volta?
- ...
- Promete que você existe?
- ...
domingo, 19 de abril de 2009
Quero só o que não existe
Não quero essa atenção ensaiada, estampada nos olhos dos outros.
Não quero a conversa vazia dos salões de vida pseudo-adulta
Não quero sustentar a mentira alheia
Nem a saudação torta, cronometrada, programada.
(às 14h eu tenho tempo - não quero mais ter tempo)
Não quero a carência arredia dessas almas nômades.
Não quero mais quem não sabe nada, nada mesmo,
Nem quem não sabe sentir nada, nada mesmo
além do próprio umbigo
Não quero mais!
Não quero mais ouvir a falta que faz o que não faz falta.
Não quero mais procurar razão no irracional.
Nem saber das histórias de quem quer o que eu não quero.
(E o que eu não quero?)
Não quero mais nada.
Não quero mais ninguém.
Não quero mais lugar nenhum.
Quero mais.
Perdi a capacidade de escrever.
Não quero a conversa vazia dos salões de vida pseudo-adulta
Não quero sustentar a mentira alheia
Nem a saudação torta, cronometrada, programada.
(às 14h eu tenho tempo - não quero mais ter tempo)
Não quero a carência arredia dessas almas nômades.
Não quero mais quem não sabe nada, nada mesmo,
Nem quem não sabe sentir nada, nada mesmo
além do próprio umbigo
Não quero mais!
Não quero mais ouvir a falta que faz o que não faz falta.
Não quero mais procurar razão no irracional.
Nem saber das histórias de quem quer o que eu não quero.
(E o que eu não quero?)
Não quero mais nada.
Não quero mais ninguém.
Não quero mais lugar nenhum.
Quero mais.
Perdi a capacidade de escrever.
domingo, 12 de abril de 2009
Tão somente.
Thaís fechou a porta e abriu o livro na página 119. O livro não, a xerox dele. Rabiscos de "eu odeio" e "eu quero" contaminavam o rodapé.
Thaís tentou controlar sua mania de prever os atos alheios. Os eufemismos abreviados do criancinha. O impulso etílico dos amiguinhos e coleguinhas - todos devidamente diminutivados e diminuídos.
Thaís narra a própria vida mentalmente quando lê romances em demasia. A vida mesma devia ser um romance. As pessoas mesmas - e todas, sem exceção - deviam viver romances. De literatura e de cinema. Final feliz não devia ser clichê.
Abriu o Word e começou a monografia. Digitou com fervor idem's, apuds e ipsis litteris.
"Eu sou uma citação?"
Thaís tentou controlar sua mania de prever os atos alheios. Os eufemismos abreviados do criancinha. O impulso etílico dos amiguinhos e coleguinhas - todos devidamente diminutivados e diminuídos.
Thaís narra a própria vida mentalmente quando lê romances em demasia. A vida mesma devia ser um romance. As pessoas mesmas - e todas, sem exceção - deviam viver romances. De literatura e de cinema. Final feliz não devia ser clichê.
Abriu o Word e começou a monografia. Digitou com fervor idem's, apuds e ipsis litteris.
"Eu sou uma citação?"
domingo, 11 de janeiro de 2009
Duas manhãs de Abril
Foi com uma espécie de asco que descobriu que aquilo existia. Crianças que mais pareciam um esqueleto, só que negrinhas, cabeçudas. Os dentes branquíssimos e os beiços gordos, os olhos amarelos e cansados.
- Mãe, que é isso?
- São as crianças na África.
O choque era tanto que não conseguiu perguntar como elas carregavam a mochila da escola com aqueles braços fininhos.
Aos poucos virou uma obsessão vasculhar a revista em busca daquela imagem. Não, não podia estar lá ainda. Não podia ser verdade. E quando a encontrava, mudava logo de página, como quem vê uma obscenidade e tem medo de ser pego no flagra.
E a pergunta... As perguntas todas que desejava fazer lhe apavoravam. Achava a curiosidade sádica.
"Eu sou má".
Desejou poder ler aquelas letras todas.
Iludiu-se com a possibilidade de ser só um anúncio de um filme de horror.
Na Segunda a faxineira (negrinha, cabeçuda) dirigiu-se à sala de estar. Esbarrou na criança, que apavorou-se ao reconhecer na moça as características da foto.
- Você veio da África?
E a expressão confusa da mulher, a boca aberta, os olhos cansados, não deixaram dúvidas. Mesmo a moça negando, já não tinha jeito. A menina entendeu, na sua cabecinha imaginativa, que a negrinha era uma sobrevivente. Uma heroína. Com lágrimas nos olhos, abraçou a moça.
Um abraço úmido venceu a História.
- Mãe, que é isso?
- São as crianças na África.
O choque era tanto que não conseguiu perguntar como elas carregavam a mochila da escola com aqueles braços fininhos.
Aos poucos virou uma obsessão vasculhar a revista em busca daquela imagem. Não, não podia estar lá ainda. Não podia ser verdade. E quando a encontrava, mudava logo de página, como quem vê uma obscenidade e tem medo de ser pego no flagra.
E a pergunta... As perguntas todas que desejava fazer lhe apavoravam. Achava a curiosidade sádica.
"Eu sou má".
Desejou poder ler aquelas letras todas.
Iludiu-se com a possibilidade de ser só um anúncio de um filme de horror.
Na Segunda a faxineira (negrinha, cabeçuda) dirigiu-se à sala de estar. Esbarrou na criança, que apavorou-se ao reconhecer na moça as características da foto.
- Você veio da África?
E a expressão confusa da mulher, a boca aberta, os olhos cansados, não deixaram dúvidas. Mesmo a moça negando, já não tinha jeito. A menina entendeu, na sua cabecinha imaginativa, que a negrinha era uma sobrevivente. Uma heroína. Com lágrimas nos olhos, abraçou a moça.
Um abraço úmido venceu a História.
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