domingo, 7 de setembro de 2008

Pena de pombo

Tinham dois pombos bebendo a água que escorria da calha azulada. Chovera no dia anterior; do cano pingava uma gota de cada vez, e enquanto um pombo esperava, o outro bebia; revezavam.
Porém, dentro a calha estava toda enferrujada. Os pombos por dentro também deviam estar muito podres; as vísceras, os vermes todos. Os pombos devem ter muitos vermezinhos com os quais praticam simbiose pra não morrerem intoxicados pela água impura que bebem. São quase ratos, só que ninguém os quer pra fazer teste de laboratório.
Já vi pombos bebendo água de esgoto - ou há muita sede, ou muita resistência gustativa e imunológica. A água do esgoto é bonita se a gente vê com olhos de criança a paisagem que ela reflete. Quando chove, as poças d'água refletem os prédios, o céu, os fios de alta tensão e os pombos que pousam nos fios. O pombo feioso e sujo, com aquele intrigante colarinho esverdeado. Parece que o pombo tá sujo de óleo, feito vítima de desastre ecológico, e aí eu tenho vontade de cuidar. Só que humano não pode encostar em pombo; dá doença. Chama-se "toxoplasmose". Lá em Novo Hamburgo um pombo apareceu com a asa quebrada, eu peguei no colo pra tirar do meio da rua e a moça disse: "lava essa mão que esse bicho é nojento". Passou até remédio em mim. Foi assim que aprendi: não pode! Ai-ai-ai!
Tem pombo mutilado, tipo veterano de guerra; não tem pata, voa torto, o bico quebrado, as penas caindo. Mas a gente não pode fazer nada porque o pombo tem doença. E como a gente não pode fazer nada, só assistir àquela miséria, a gente tranforma compaixão em asco e faz cara de nojo quando ele dá rasante. A reação que me dá ao ver pombo mutilado é das mais desagradáveis: dó e auto-censura; nojo dele e ódio de mim porque o coitadinho não tem culpa de ser o que é. Travo uma verdadeira batalha de valores e nunca sei o que é o certo de se sentir.
O pombo é um bicho incompreendido porque ninguém fala com voz afetada quando vê as suas crias. Ninguém sequer usa o diminutivo quando se refere a elas: são filhotes de pombo, não são filhotinhos. Já tentaram acertar uma bola de basquete num filhote de pombo, eu gritei "pára! pára!" e o passarinho voou. Pombo é tão incompreendido que a gente esquece que ele também é passarinho, que voa, e que se inclui em todas as metáforas de liberdade e beleza que a gente faz em relação às aves.
Eu tenho pena de pombo, especialmente daqueles que compartilham a água, porque ser pombinho hoje em dia não é fácil nem pra ser humano. Porque a beleza daquela cena só existiu enquanto eu olhei de longe, esqueci as vísceras, os vermes e a ferrugem.
Às vezes a ignorância é uma dádiva.


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ps.: Por que eu fico tão obcecada por coisas e pessoas sem importância?