sábado, 28 de julho de 2007

"Dar tempo ao tempo"

Já raciocinaram sobre o absurdo dessa expressão?
Se o tempo é o próprio tempo, como você pode dar tempo a ele mesmo? Não deveria ser o contrário, o tempo dar-se a você? Ou o tempo dar-se a ele mesmo?
Mas você, humilde ser humano, dando tempo ao tempo?
Como se nós tivéssemos tempo pra dar; justo nós, que tanto tempo esperamos para que o tempo nos faça esquecer seja lá o que for. Justo nós, mortais, que tememos o tempo, aquele impalpável monstro que nos tira a juventude, a impulsividade e a vida.
Que vil tipo de criatura daria ao todo poderoso tempo logo aquilo que mais teme: o tempo? Eu é que não.
Dar tempo ao tempo também pode significar o envelhecimento do mesmo, mais um motivo para eu recear o uso dessa expressão.
Quero dizer, se o tempo ficar velho e sem forças, como o tempo poderá correr? E se o tempo não correr, apesar de ficarmos eternamente jovens seremos eternamente os mesmos: com os mesmos sonhos e as mesmas angústias. Terrível!
Tenho pra mim que se Deus existisse ele não seria paz, nem amor, nem vida...ele seria tempo. Porque a única coisa que pode nos dar e nos tirar tudo é o tempo.
O tempo cura, o tempo fere; o amor vem com o tempo, o amor se desgasta com o tempo; as pessoas nascem após um tempo (9 meses não deixa de ser um período dele) e envelhecem com o passar do tempo. Se Deus está em tudo, Ele só pode ser o tempo. Então tempo não deveria ser escrito em maiúsculo? Tempo. É, acho que soa melhor. Será então que as rezas não servem de nada? Porque o Tempo é incontrolável e impassível ("e relativo", grita Einstein de algum lugar no infinito). Ou será o Tempo piedoso, por deletar rascunhos salvos por engano?
Vendo por esse ângulo, o certo não seria "dar tempo ao tempo", e sim dar um tempo a nós mesmos. Mas se fosse tão fácil sermos auto-suficientes não existiriam livros de auto-ajuda por aí, né? Talvez então, a fim de não nos sentirmos desamparados, devêssemos pedir ao Tempo um pouquinho mais de agilidade: "Tende piedade, ó Senhor, e acelerai o vosso passo"; quem sabe assim você tenha um tempo só para si, sem ninguém para interferir no que só diz respeito a você a Ele: o esquecimento.

sábado, 14 de julho de 2007

Cheiros

"...as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza,
do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante
da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar
ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração.
Com esta, ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe
caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma,
diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente
entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio.
Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas"
PATRICK SÜSKIND
-
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
-
No rastro do seu caminhar
No ar onde você passar
O seu perfume inebriante
Pendura num instante
A rua inteira a levitar
TRIBALISTAS
-
O amor é sujo
tem cheiro de mijo
ele mete medo
vou lhe tirar disso
TRIBALISTAS
-
Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Nas cinzas das horas
ADRIANA CALCANHOTTO
-
Mucosa roxa, peito cor de rôla
Seu beijo, seu texto,
Seu cheiro, seu pêlo,
Cê toda
CAETANO VELOSO
-
Quando estiver perdido, siga sempre o seu nariz.
GANDALF
-
Eu podia fazer uma série de trocadilhos infames dentro do contexto, mas vou me limitar a dizer que o nosso "paladar aromático" se apura quando estamos apaixonados, o que explica a profusão de poesia que surge do amor - seja ele correspondido ou não. Digo isso porque concordo com o Patrick quando ele diz que "o aroma vai diretamente para o coração", não só pelo lado denotativo-científico da frase mas também pelo conotativo-metafórico-sinestésico (inventei essa última, de sinestesia). De todos os nossos sentidos, o olfato é o mais confiável (exceto quando se está gripado).
Sem mais delongas, recomendo "O Perfume", que é um ótimo livro, e recomendo também que tirem suas próprias conclusões dos textos acima, igonorando tudo o que eu escrevi até aqui porque eu estou morrendo de sono e fome. A minha conclusão profundamente emotiva e sinestésica (adorei a palavra!) dessa seleção de aromas eu não consegui expor. Mas aspirem vocês mesmos cada um deles, com calma e perspicácia; nosso "paladar aromático" é o mais instintivo e o menos exprimível dos nossos sentidos.

quinta-feira, 5 de julho de 2007

O aquário

Num recipiente de vidro esférico, a água tremulava lastimosa. Um peixinho dourado jazia inerte, flutuando sobre a sua superfície. Com o ventre virado para cima, suas guelras abriam-se inchadas e vermelhas e os olhos fixavam o nada. Suas escamas, porém, mantinham o mesmo brilho do dia anterior, e se não fosse a posição curiosa em que o animal se encontrava, seria possível acreditar que era um peixinho saudável.
A criança entra na sala já com o uniforme vermelho do Jardim de Infância. Fica na ponta dos pés para ver melhor o quadro sinistro que ela ainda não compreendeu. Vira a cabeça para um lado, vira a cabeça para o outro; cutuca o vidro fazendo a água se agitar e o peixinho se mexer de forma macabra, vacilando e parando na mesma posição. A cena é atroz. O aquário é funesto. A criança, com olhos lacriomosos e beiço trêmulo, diz numa voz fina de quem vai começar a chorar:
-Mexe peixinho! Mexe!
Mas o peixinho está morto.