Anabela não aceitou muito bem a idéia da minha viagem. Zombou de mim, com o tom cínico que usa exclusivamente para me irritar. Depois ficou quieta, provavelmente medindo seu descaramento, e para a minha surpresa eu descobri que sentiria a sua falta, e que não estava pronto para deixá-la tão de repente. Ela baixou a cabeça e o seu penteado desmanchou. Ana costumava prender os cabelos em um coque com o lápis quando estava trabalhando, e eu a havia surpreendido com essa conversa.
Cheguei em casa uma hora mais cedo do que de costume. Ela estava inclinada sobre a escrivaninha, mordendo a ponta do lápis com a boca, franzindo a testa frente ao difícil raciocínio que lhe era proposto. Anabela era arquiteta; eu, médico. Toquei seu ombro e disse:
-Nana, precisamos conversar.
Ela consentiu com a cabeça, pronunciou um "aham" meio abafado, riscou algumas coisas no papel à sua frente e levantou-se, sentando logo em seguida na beirada da cama de casal. Disse-lhe, com uma certa apreensão, que eu fora convidado por um hospital londrino a estudar e trabalhar na cidade. Expliquei-lhe que tudo seria pago pela universidade, que era um grande passo na minha carreira, que gostaria de poder levá-la comigo, mas não podia. Deixei claro que a decisão estava tomada - embora eu mesmo não tivesse tanta certeza - e que eu partiria em duas semanas. Ela me perguntou se, durante essas duas semanas restantes, eu continuaria morando lá. Disse que prefiria voltar à casa do meu pai e concentrar-me nos estudos, pois era preciso me preparar. Foi aí que ela ironizou:
- Uma oportunidade única, eu imagino.
Dei-lhe um "aham" como réplica - Ana não gostava de repostas monossilábicas, e eu desejava provocá-la também.
Com dois anos e meio de relacionamento, éramos capazes de prever as atitudes um do outro. Por isso foi tão assustador ver o seu coque se desfazendo e pensar em uma vida sem ela - sem Anabela -, sem suas ironias, suas broncas e seu perfume impregnado no meu pijama todo dia de manhã. Não era tão fácil deixá-la, eu adorava cada traço seu.
Aproximei-me, e ajolhei à sua frente, deitando a cabeça sobre as suas pernas morenas de sol. Como eram belas aquelas pernas douradas!
Então o timer do fogão apitou e eu tinha fome. Pedi para que comêssemos logo - de que adiantava trocar carícias? Minha decisão estava tomada.
Só quando parti no dia seguinte, deixando minha Anabela nua sobre a cama, cogitei a possibilidade de haver de fato um destino que nos aproximasse novamente. Tinha tentado deixar endereço e telefone do alojamento com ela, mas Nana recusou-se a aceitar. Então vesti a calça, abotoei a camisa e calcei os sapatos. Beijei Anabela (Analinda! Anaformosa!) com ternura, sem acordá-la.
Minha decisão estava tomada.
E assim eu parti.
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conheça Anabela em: http://abertoparavisitas.blogspot.com/2008/01/bifurcao.html
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
sábado, 2 de fevereiro de 2008
Enquanto o lobo não vem
Outrora aquela clareira era mais convidativa. As copas e as folhas entrelaçadas, que formam um pequeno bosque ao seu redor, tinham contornos mais belos. A relva era mais reluzente e o ar mais fresco.
Bastava uma brisa sacodir os ramos das árvores para eu sentir nascer em mim uma vontade - quase um ímpeto - de fazer parte do ballet da natureza. De dançar sozinha entre as árvores, embalada pelo vento, no ritmo do canto de um uirapuru, de um sábia-laranjeira, de um curió...
Quando cansada, estendia os braços e o corpo sobre a grama úmida de orvalho, soltava meus cabelos e deixava o vento emaranhá-los. Pouco a pouco um canto de cigarra tornava-se perceptível e me ninava. Eu fechava os olhos e dormia, acordando horas depois, com o vestido amassado sob a vermelha abóbada celeste do poente.
O céu costumava ser mais azul, as nuvens mais alvas; o silêncio era sinônimo de calma.
Mas o tempo passou. Crescemos (eu e a cidade). E nas desilusões da vida adulta encontrei novamente a minha clareira, infinitamente menos bela, como uma fotografia desbotada pelo tempo. Suas árvores já não têm o mesmo encanto, nem o ar a mesma pureza; seus pássaros migraram para um lugar menos triste, menos cinza, ou foram atraídos por alguma arapuca.
Chego a duvidar deste quadro; o problema deve estar em mim, fui eu que perdi a paleta com que pintava a vida! Então percebo o fato inegável, indubitável...
Não foi o bosque que perdeu a graça, fomos nós que perdemos o bosque.
Bastava uma brisa sacodir os ramos das árvores para eu sentir nascer em mim uma vontade - quase um ímpeto - de fazer parte do ballet da natureza. De dançar sozinha entre as árvores, embalada pelo vento, no ritmo do canto de um uirapuru, de um sábia-laranjeira, de um curió...
Quando cansada, estendia os braços e o corpo sobre a grama úmida de orvalho, soltava meus cabelos e deixava o vento emaranhá-los. Pouco a pouco um canto de cigarra tornava-se perceptível e me ninava. Eu fechava os olhos e dormia, acordando horas depois, com o vestido amassado sob a vermelha abóbada celeste do poente.
O céu costumava ser mais azul, as nuvens mais alvas; o silêncio era sinônimo de calma.
Mas o tempo passou. Crescemos (eu e a cidade). E nas desilusões da vida adulta encontrei novamente a minha clareira, infinitamente menos bela, como uma fotografia desbotada pelo tempo. Suas árvores já não têm o mesmo encanto, nem o ar a mesma pureza; seus pássaros migraram para um lugar menos triste, menos cinza, ou foram atraídos por alguma arapuca.
Chego a duvidar deste quadro; o problema deve estar em mim, fui eu que perdi a paleta com que pintava a vida! Então percebo o fato inegável, indubitável...
Não foi o bosque que perdeu a graça, fomos nós que perdemos o bosque.
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