terça-feira, 27 de novembro de 2007

Poessíntese

Não tinha reparado naquela nódoa de tinta preta que manchava o meio da folha. Tão pequenina era que, mesmo assim, o poeta escreveu ali. Só a atingiu depois de preenchidas dez linhas, e a marquinha cresceu um bocado quando o fez; evoluíra para "borrão". Achando que a mancha daria realismo à obra, o escritor continuou. Porém a nódoa crescia junto, sem precisar de contato direto com a ponta da caneta. Crescia e engolia duas, três palavras. O autor assustou-se: teria gerado uma rima autófaga? Seria capaz de satisfazê-la? Receoso, parou de compor para observar. Talvez a fome da mancha estancasse no fim da estrofe...
Trágico engano. Nem o fim da poesia foi suficiente. Desesperado, o autor começou a escrever tudo o que podia, tudo o que vinha à sua cabeça, com a rapidez e a urgência de um louco, mas a nódoa só fazia comer e comer. Dias a fio passaram assim. Da esferográfica do poeta já não saíam mais rimas, só palavras que, para ele, eram líricas o bastante para saciar qualquer criatura.
Sorriso
Flor
Canção
Lua
Doce
Abraço
Amor
Sonh...
A caneta caiu silenciosamente sobre a folha - que a essa altura era totalmente preenchida pela mancha e por palavras espremidas às pressas, quase ininteligíveis. O escritor perecera; não por fome, ou sede, ou cansaço, mas porque sua inspiração - seu elixir! - fora regurgitada sobre aquela página maculada. E a mácula tranformou-se num buraco negro, numa peste negra, que devorava e destruía todo e qualquer lirismo à sua volta. Primeiro as palavras soltas, depois o caderno, depois os arquivos e os livros, depois o próprio cadáver do poeta. Como se não bastasse, destruiu também a cidade, porque ela é o combustível da imaginação artística. Destruiu as crianças e a prosopopéia, cuja alegria enchia os versos de graça. As flores, os perfumes, os sabores, a sinestesia. Destruiu os oceanos e o cromatismo, transformou-os em cor de nanquim. O belo, o feio, a antítese... sugou-os com avidez. Até o verbo destruir ela comeu, porque comeu de tudo, inclusive dela mesma.
E quando a mancha dominou o espaço-tempo, quando engoliu as galáxias e os universos paralelos, então a mancha me destruiu também, e destruiu o fim dessa narração infinita.

3 comentários:

Anônimo disse...

Não tem diferença não, Thaís...todos eles dão vazão à (noosa?)aflição. É o q a "palavra" pede. Ela precisa, sabe? rs.

Beijos.

Anônimo disse...

Nossa, agora q eu parei pra ler seu texto. Foda, muito bom mesmo.
=)))

Beijocas.

Anônimo disse...

Thaís, eu tb tinha até começar a fazer. A parada é "quente", pode crer.rs.