Não tinha reparado naquela nódoa de tinta preta que manchava o meio da folha. Tão pequenina era que, mesmo assim, o poeta escreveu ali. Só a atingiu depois de preenchidas dez linhas, e a marquinha cresceu um bocado quando o fez; evoluíra para "borrão". Achando que a mancha daria realismo à obra, o escritor continuou. Porém a nódoa crescia junto, sem precisar de contato direto com a ponta da caneta. Crescia e engolia duas, três palavras. O autor assustou-se: teria gerado uma rima autófaga? Seria capaz de satisfazê-la? Receoso, parou de compor para observar. Talvez a fome da mancha estancasse no fim da estrofe...
Trágico engano. Nem o fim da poesia foi suficiente. Desesperado, o autor começou a escrever tudo o que podia, tudo o que vinha à sua cabeça, com a rapidez e a urgência de um louco, mas a nódoa só fazia comer e comer. Dias a fio passaram assim. Da esferográfica do poeta já não saíam mais rimas, só palavras que, para ele, eram líricas o bastante para saciar qualquer criatura.
Sorriso
Flor
Canção
Lua
Doce
Abraço
Amor
Sonh...
A caneta caiu silenciosamente sobre a folha - que a essa altura era totalmente preenchida pela mancha e por palavras espremidas às pressas, quase ininteligíveis. O escritor perecera; não por fome, ou sede, ou cansaço, mas porque sua inspiração - seu elixir! - fora regurgitada sobre aquela página maculada. E a mácula tranformou-se num buraco negro, numa peste negra, que devorava e destruía todo e qualquer lirismo à sua volta. Primeiro as palavras soltas, depois o caderno, depois os arquivos e os livros, depois o próprio cadáver do poeta. Como se não bastasse, destruiu também a cidade, porque ela é o combustível da imaginação artística. Destruiu as crianças e a prosopopéia, cuja alegria enchia os versos de graça. As flores, os perfumes, os sabores, a sinestesia. Destruiu os oceanos e o cromatismo, transformou-os em cor de nanquim. O belo, o feio, a antítese... sugou-os com avidez. Até o verbo destruir ela comeu, porque comeu de tudo, inclusive dela mesma.
E quando a mancha dominou o espaço-tempo, quando engoliu as galáxias e os universos paralelos, então a mancha me destruiu também, e destruiu o fim dessa narração infinita.
terça-feira, 27 de novembro de 2007
quinta-feira, 22 de novembro de 2007
O assassinato de Teddy
Caminhava o cão com o urso na boca. Caminhava com o rabo abanando, anunciando a presa capturada. Caminhava e invertia a ordem da cadeia alimentar. Mas que covardia, que cachorro pimpão! O urso é de pelúcia! O urso não é do cão!
Acontece que o bicho de brinquedo não pode reagir ao ataque fajuto do bicho de verdade. E assim o pobre ursinho era arrastado pelo chão de taco, com a perna babada dependurada na boca do cão.
Claro que o nosso amigo peludo - o de verdade - não queria fazer mal. Nem inverter a ordem da cadeia alimentar ele queria. Era só travessura, brincadeira inocente... Cachorro sapeca não tem ciso nem juízo. Cheio de boas intenções, o cão pretendia esconder o brinquedo do menino chorão. O menino chorão é o dono do urso. O menino chorão é o dono do cão.
Mas havia um pedaço de madeira solto (nunca confie num chão de taco!) e a madeira sim; a madeira era malvada! Prendeu a costura do pecoço do urso e, junto, acabou por prender o cão também. Só que bicho de verdade não se deixa agarrar. Bicho que é bicho luta pela liberdade!
Logo, o cão - que é bicho, e tem orgulho de sua bicheza - rosnou feroz, mordendo a (dupla) vítima ainda mais forte com seus dentes caninos. Puxa pra lá! Puxa pra cá! E a pelúcia jorrou da cabeça do ursinho. E o ursinho caiu decapitado no chão.
Que tristeza de cena! Pobrezinho do cão! Sem saber o que fazer, a vítima indireta do ataque fatal escondeu a cabeça da vítima direta sob o sofá. E escondeu-se junto, envergonhado da travessura.
Quando o menino chorão chamou o amigo peludo (o de verdade) para brincar, este não respondeu. O menino desconfiou. Chamou de novo e nada. De novo e nada. E nada.
Cadê?
Mobilizou toda a família quando abriu o berreiro.
Cadê? Cadê?
Tá aqui, debaixo do sofá.
Encontra-se o réu, encontra-se a cabeça do urso degolado. Degolado!? Cachorro mau! Muito mau!
Novo berreiro.
Calma, tem conserto. É só achar o corpo.
Arma-se outro mutirão de busca. A família em polvorosa.
Mamãe urso encontra a cena do crime, onde jaziam pelúcia e corpo. A madeira, ursicida descarada, passou despercebida; afinal, quem poria a culpa num mísero soalho?
Mamãe jura operar o moribundo. Diz que ele perdeu muita pelúcia, mas há salvação.
O cão, coitado, é expulso da sala de espera. "Xô, xô, chispa". É levado à força pela coleira vermelha. Apesar de estar chovendo na varanda, este é o cárcere escolhido. Sentença: solidão e frio. "Feio! Mau!", acusa novamente o menino chorão. O inocente lamenta sua miséria. Mas bicho, mesmo que de verdade, não consegue protestar.
E lá vai o cão arrependido à procura de abrigo. O cão com orelhas tão fartas! O cão com um osso roído. O cão com o rabo entre as patas.
Acontece que o bicho de brinquedo não pode reagir ao ataque fajuto do bicho de verdade. E assim o pobre ursinho era arrastado pelo chão de taco, com a perna babada dependurada na boca do cão.
Claro que o nosso amigo peludo - o de verdade - não queria fazer mal. Nem inverter a ordem da cadeia alimentar ele queria. Era só travessura, brincadeira inocente... Cachorro sapeca não tem ciso nem juízo. Cheio de boas intenções, o cão pretendia esconder o brinquedo do menino chorão. O menino chorão é o dono do urso. O menino chorão é o dono do cão.
Mas havia um pedaço de madeira solto (nunca confie num chão de taco!) e a madeira sim; a madeira era malvada! Prendeu a costura do pecoço do urso e, junto, acabou por prender o cão também. Só que bicho de verdade não se deixa agarrar. Bicho que é bicho luta pela liberdade!
Logo, o cão - que é bicho, e tem orgulho de sua bicheza - rosnou feroz, mordendo a (dupla) vítima ainda mais forte com seus dentes caninos. Puxa pra lá! Puxa pra cá! E a pelúcia jorrou da cabeça do ursinho. E o ursinho caiu decapitado no chão.
Que tristeza de cena! Pobrezinho do cão! Sem saber o que fazer, a vítima indireta do ataque fatal escondeu a cabeça da vítima direta sob o sofá. E escondeu-se junto, envergonhado da travessura.
Quando o menino chorão chamou o amigo peludo (o de verdade) para brincar, este não respondeu. O menino desconfiou. Chamou de novo e nada. De novo e nada. E nada.
Cadê?
Mobilizou toda a família quando abriu o berreiro.
Cadê? Cadê?
Tá aqui, debaixo do sofá.
Encontra-se o réu, encontra-se a cabeça do urso degolado. Degolado!? Cachorro mau! Muito mau!
Novo berreiro.
Calma, tem conserto. É só achar o corpo.
Arma-se outro mutirão de busca. A família em polvorosa.
Mamãe urso encontra a cena do crime, onde jaziam pelúcia e corpo. A madeira, ursicida descarada, passou despercebida; afinal, quem poria a culpa num mísero soalho?
Mamãe jura operar o moribundo. Diz que ele perdeu muita pelúcia, mas há salvação.
O cão, coitado, é expulso da sala de espera. "Xô, xô, chispa". É levado à força pela coleira vermelha. Apesar de estar chovendo na varanda, este é o cárcere escolhido. Sentença: solidão e frio. "Feio! Mau!", acusa novamente o menino chorão. O inocente lamenta sua miséria. Mas bicho, mesmo que de verdade, não consegue protestar.
E lá vai o cão arrependido à procura de abrigo. O cão com orelhas tão fartas! O cão com um osso roído. O cão com o rabo entre as patas.
quinta-feira, 15 de novembro de 2007
In memoriam
-Vem dormir com o vovô.
E eu ia desengonçada, com as pernas tortas, a chupeta de ursinho e a fralda grandes demais pra mim. Ou pelo menos é assim que vovó e o álbum de fotografias contam.
Vovô era gordinho e sorridente. Apesar disto, lembro de ter ficado com raiva quando ele e vovó brigaram. Lembro também do delicioso bolinho de bacalhau, sempre presente nas datas festivas. Lembro da época em que ele ainda trabalhava, quando os almoços em família eram uma alegre reunião.
Mas sabe do que eu não lembro? Não lembro da sua voz. Eu até tento, me esforço, mas tudo que vem à mente é o seu falar rouco dos últimos dois anos. Aquela doença maldita é muito rápida!
Começou sem conseguir engolir; aos poucos não conseguia falar; depois emagreceu, emagreceu... logo tossia todo o tempo e não respirava direito. Aí mudou cá pra casa. Respirador pra dormir. Nebulizador. Insônia, sonda, traqueostomia, várias cirurgias, vários diagnósticos, "sinto muito, é fase terminal".
Bem, terminou. Como disse o padre, "agora ele descansa". Vovô não perdeu a luta, não. Saiu herói para mim e para aqueles que acompanharam esses últimos dois anos. No meio de todo o sofrimento de ontem, os médicos ficaram boquiabertos ao notar sua persistência em tentar levantar, falar, sorrir. E ele sorriu. Seus olhinhos se abriram para ver que ainda havia gente ao seu lado. Seus olhinhos que perderam o brilho junto com a vida.
Eu diria que meu avô não morreu; só dormiu, com uma bruta hipotermia, entre a centena de flores que ornava o seu leito. E repito: vovô também não perdeu a luta. Não... só jogou a toalha porque não gosta de guerra.
Seu Luís era um homem de paz.
E eu ia desengonçada, com as pernas tortas, a chupeta de ursinho e a fralda grandes demais pra mim. Ou pelo menos é assim que vovó e o álbum de fotografias contam.
Vovô era gordinho e sorridente. Apesar disto, lembro de ter ficado com raiva quando ele e vovó brigaram. Lembro também do delicioso bolinho de bacalhau, sempre presente nas datas festivas. Lembro da época em que ele ainda trabalhava, quando os almoços em família eram uma alegre reunião.
Mas sabe do que eu não lembro? Não lembro da sua voz. Eu até tento, me esforço, mas tudo que vem à mente é o seu falar rouco dos últimos dois anos. Aquela doença maldita é muito rápida!
Começou sem conseguir engolir; aos poucos não conseguia falar; depois emagreceu, emagreceu... logo tossia todo o tempo e não respirava direito. Aí mudou cá pra casa. Respirador pra dormir. Nebulizador. Insônia, sonda, traqueostomia, várias cirurgias, vários diagnósticos, "sinto muito, é fase terminal".
Bem, terminou. Como disse o padre, "agora ele descansa". Vovô não perdeu a luta, não. Saiu herói para mim e para aqueles que acompanharam esses últimos dois anos. No meio de todo o sofrimento de ontem, os médicos ficaram boquiabertos ao notar sua persistência em tentar levantar, falar, sorrir. E ele sorriu. Seus olhinhos se abriram para ver que ainda havia gente ao seu lado. Seus olhinhos que perderam o brilho junto com a vida.
Eu diria que meu avô não morreu; só dormiu, com uma bruta hipotermia, entre a centena de flores que ornava o seu leito. E repito: vovô também não perdeu a luta. Não... só jogou a toalha porque não gosta de guerra.
Seu Luís era um homem de paz.
sábado, 10 de novembro de 2007
Quimeras¹ Indomáveis
Não é que eu não ande inspirada; tenho escrito tanto que dava pra encher um caderno, quase. Também não é exatamente falta de tempo, embora isso tenha colaborado um bocado. Acontece que eu simplesmente não consigo mais conceber finais, sejam eles felizes ou inditosos. Aliás, analisando bem a segunda frase desse texto, eu diria mais: não só poderia encher um caderno com as minhas historinhas como quase poderia escrever o meu próprio Contos Inacabados.
O negócio é que há dois tipos de personagem: o tipo I, que nasce feito Kirikou² e já faz tudo por si mesma. Aí é como se houvesse uma vozinha no seu subconsciente contando uma história pronta, cujo final já está previsto desde a primeira sentença. O tipo II é indócil; nasce meio incógnita, não conta tudo o que sabe, e manda a nossa imaginação adivinhar o resto.
-Eu entrei na sala e...
-E o que?
-Adivinha! Há! Pegadinha do malandro!
Personagens incógnitas são também muito exigentes. Batem o pé e reclamam a torto e a direito do final que a gente escolhe para elas. "Não, eu não quero andar de bicicleta até a Conchinchina!". E ai de você se não lhes respeitar a decisão! Somem, desvanecem, apagam-se, extinguem-se (e na maioria das vezes levam consigo a sua história). Lidar com essas chatices da imaginação é uma prova de suprema paciência.
Assumo que não gosto muito dessas personagens, não. Tanto é que alguns contos inacabados estão há muito intocados também. Como não sou Capitão Nascimento³ pra mandar todo mundo pro saco até que revelem o resto da história, não quero mais saber dessas criaturas pentelhas.
Então vocês - leitores - preparem-se para um ou outro final inusitado e nonsense que possa aparecer daqui por diante. E vocês - personagens insolentes - saibam que desisto de tentar satisfazer-lhes a vontade, e que não vou de jeito nenhum deixar um bando de incógnitas malcriadas felizes para sempre.
Tenho dito.
Observações:
¹ Monstro da mitologia grega com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão que cuspia fogo; palavra comumente utilizada para representar o imaginário.
² Personagem folclórico africano. Reza a lenda que Kirikou era um menino capaz de andar e falar imediatamente após o seu nascimento. Salvou sua vila, enquanto ainda recém-nascido, destruindo os poderes da feiticeira Karaba.
³ Criatura lendária do neo-folclore brasileiro. Acredita-se ser um homem de preto que assusta satanás.
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