quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Acidente na Rio Branco

Entrou sério na clínica, apanhou uma revista dessas que só mesmo em sala de espera um sujeito culto se digna a ler e demonstrou uma paciência incompatível com o ambiente. Cerca de 45 minutos se passaram até que fosse atendido. Na intimidade do consultório, o doutor leu e releu sua ficha com um misto de sisudez e espanto .
- Mas a sua saúde é exemplar! Colesterol excelente, pressão estável, leucócitos inalterados... Qual é a razão da visita?
- Eu gostaria de remover o meu braço esquerdo.
O médico coçou a cabeça, tremeu a sobrancelha contraindo um esgar e questionou se não devia ter pedido também uma tomografia, ressonância ou um qualquer desses exames neuropsiquiátricos que avaliam as mazelas do cérebro e pretendem medir a sanidade dos homens. O rapaz era mentecapto, com certeza.
- Explique então, meu jovem. Por que você quer arrancar o braço?
- Esquerdo. - frisou o paciente.
- Sim, esquerdo.
Aos doidos não se contraria a lógica.
- Tem uma tatuagem nele. Muitas lembranças.
Lançou um olhar fugaz para a janela aberta. Um olhar de saudade. O doutor arrepiou-se, temeroso.
- E não seria mais fácil apagar a tatuagem? Há uma série de lugares que fazem este serviço. Eu mesmo não trabalho com dermatologia, mas conheço um especialista...
- Não, não. O senhor não está entendendo. Eu não quero apagar a tatuagem. Eu quero removê-la.
Silêncio no consultório. O doutor pediu uma ambulância pelo telefone, com discrição. O paciente prosseguiu inabalável.
- Quando se apaga alguma coisa tem-se a necessidade de se cobrir com uma outra. É como escrever no caderno, apagar, e ver aquele rastro que fica de que algo um dia foi escrito. Eu não quero cobrir a tatuagem com uma outra. Nem olhar pro meu braço e saber que ali tinha uma tatuagem. Assim como prefiro arrancar a página do caderno, prefiro remover meu braço esquerdo.
- Creio que não posso ajudá-lo. Tem ciência das consequências dessa escolha? Não é algo que se possa alterar. O caderno tem muitas folhas, braço esquerdo só tem um.
- Não vejo grande diferença. Sou destro. Além disso, me contento com um braço mecânico, será como um caderno novo. Tenho dinheiro suficiente. Eu pago.
Ruídos na sala de espera. A recepcionista deu um grito assustado. O sanatório invadiu a sala numa onda branca. O médico movia-se apreensivo, como quem tenta acalmar um cão raivoso mas tem medo de ser mordido.
- Calma - alertou.
- Calma - repetiu o enfermeiro chefe.
O paciente pacientemente levantou-se. Declarou, paciente, não estar louco.

Saiu pela janela, e não pela porta.