quinta-feira, 15 de novembro de 2007

In memoriam

-Vem dormir com o vovô.
E eu ia desengonçada, com as pernas tortas, a chupeta de ursinho e a fralda grandes demais pra mim. Ou pelo menos é assim que vovó e o álbum de fotografias contam.
Vovô era gordinho e sorridente. Apesar disto, lembro de ter ficado com raiva quando ele e vovó brigaram. Lembro também do delicioso bolinho de bacalhau, sempre presente nas datas festivas. Lembro da época em que ele ainda trabalhava, quando os almoços em família eram uma alegre reunião.
Mas sabe do que eu não lembro? Não lembro da sua voz. Eu até tento, me esforço, mas tudo que vem à mente é o seu falar rouco dos últimos dois anos. Aquela doença maldita é muito rápida!
Começou sem conseguir engolir; aos poucos não conseguia falar; depois emagreceu, emagreceu... logo tossia todo o tempo e não respirava direito. Aí mudou cá pra casa. Respirador pra dormir. Nebulizador. Insônia, sonda, traqueostomia, várias cirurgias, vários diagnósticos, "sinto muito, é fase terminal".
Bem, terminou. Como disse o padre, "agora ele descansa". Vovô não perdeu a luta, não. Saiu herói para mim e para aqueles que acompanharam esses últimos dois anos. No meio de todo o sofrimento de ontem, os médicos ficaram boquiabertos ao notar sua persistência em tentar levantar, falar, sorrir. E ele sorriu. Seus olhinhos se abriram para ver que ainda havia gente ao seu lado. Seus olhinhos que perderam o brilho junto com a vida.
Eu diria que meu avô não morreu; só dormiu, com uma bruta hipotermia, entre a centena de flores que ornava o seu leito. E repito: vovô também não perdeu a luta. Não... só jogou a toalha porque não gosta de guerra.
Seu Luís era um homem de paz.

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