domingo, 16 de setembro de 2007

ECT e etc

Querida,
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Como estão as coisas? Sua mãe, os meninos...
Aqui estamos todos muito bem, exceto pelo Seu Adalberto do andar de baixo, que continua roubando o caderno de esportes do nosso jornal - atitude esta que irrita imensamente meu companheiro de quarto. Quanto a mim, vou de vento em popa. As ações da empresa subiram admiravelmente, fui inclusive parabenizado pelo Eduardo na semana passada, e ele marcou uma "conversinha" para essa quinta-feira; creio poder levar algumas lembrancinhas para casa quando for visitá-los.
Mateus está indo bem na escola? E Carolzinha, já aprendeu que não se escreve cenoura com S?
Recebi - curiosamente desbotados - os desenhos que ela fez. Gostaria de ressaltar a grafia do meu nome: Carolina o escreveu com dois "esses". Ela também tornou a contar histórias sobre coelhos e senouras, e estou começando a pensar que a professora não a ensinou outras palavras senão estas.
Estranhei a ausência de desenhos do Mateus. Há alguma coisa acontecendo que eu não sei?
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Dê um abraço nas crianças e espere por mim dia 29 de manhã;
Gustavo.
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P.s.: Pensei ter anexado o cheque à última carta, mas parece que esqueci. Encontrei-o sob uma pilha de papéis no meu escritório e peço desculpas. Prometo enviá-lo na próxima carta - sem ser esta - sem mais delongas.
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Querido,
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Estamos todos bem.
Fiquei alegre em saber das novidades, especialmente da sua possível promoção. Sobre as lembrancinhas, eu quero um vestido novo e sapatos sem salto - minha coluna está em cacarecos por causa deles - que combinem com o vestido. Quanto às crianças, Carol não anda merecendo bonecas. Cismou que quer ser modelo, surrupiou minha maquiagem e até agora não sei onde a meteu. Sim, eu tenho certeza que não foi a mamãe, pois a sua filha apareceu pintada feito uma drag queen no colégio na quarta-feira e quase foi suspensa.
Tive uma conversa com a professora. Ela disse que já ensinou outras palavras, mas Carol teima em usar coelhos em todas as suas redações. A senoura já voltou a ter C, graças à analogia feita com os Coelhos, que parecem ser seu maior interesse.
Mateus por sua vez pede um jogo de computador que eu não sei escrever o nome - e ele não quer vir aqui escrever, provavelmente porque também não sabe - então quando você chegar de viagem veja com ele do que se trata.
Seu filho não mandou nenhum desenho porque ele já tem 11 anos e passou dessa fase. Aliás, encontrei uma Playboy no quarto dele outro dia e gostaria de saber se isso foi obra sua. Conversei com a professora dele, e ela diz que é perfeitamente normal (e também deu a entender que me acha neurótica, lembre-me de detalhar o acontecido quando você voltar).
Para finalizar: a coordenadora da escola anotou o telefone de um psicólogo e recomendou que levássemos a Carolina "para prevenir desvios de comportamento". Ou seja, temos mais um motivo para recear pela nossa caçula. Temo que a menina tenha herdado o gênio da minha mãe...
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Cheia de saudades,
Marcela.
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P.s.: Não precisa mais mandar o cheque, paguei com o dinheiro da poupança de férias. Quando você chegar, favor dar uma olhada nisso porque eu acho que fará falta.
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P.p.s.: Você insiste em escrever cartas! E-mails são mais rápidos, mais práticos e não custam nada além da conta da internet (que a gente já paga). Da próxima vez eu me recuso a responder em manuscrito.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

Vitória

Embrulhada nas cortinas, de pé sobre o carpete verde-musgo, Victoria bebia dry martini.
Ao pôr-do-sol o amante se fora, deixando um chupão em sua nuca, a colcha da cama em desalinho e o dinheiro para pagar a conta do hotel - altíssima, diga-se de passagem - sobre a mesinha de centro. Ela demorou mais de uma hora para levantar, com uma dor de cabeça infernal, e perceber que ele tinha partido. Contraiu o lábio inferior em sinal de protesto, roeu a unha vermelho-escarlate do polegar esquerdo e caiu pesadamente sobre o travesseiro. Demorou mais uma meia hora para enfrentar a situação, levantar e fazer o drink.
Agora estava à janela: resignada, semi-nua, apreciando o frio que fazia os seus dentes rangerem. Por um momento observou a vidraça, procurando defeitos sem saber por quê. Tamborilou com os dedos finos o vidro, emitindo um som semelhante ao trote de cavalos. Bebeu de um só gole o restante do martini, enchendo ambas as bochechas. A cabeça, ainda reagindo aos excessos da noite anterior, pareceu girar. Caminhou meio cambaleante até a poltrona rústica no canto do quarto, apoiou a taça no chão e a cabeça nos joelhos.
O ar-condicionado produzia um ruído rouco incômodo quando Victoria pegou o telefone e ligou para a recepção, perguntando se Ricardo Lugano havia deixado alguma mensagem. "Disse pra esperar, que ele volta antes das onze". Voltava mesmo, disso ela não tinha dúvida.
Era só inventar desculpas descaradas e mirabolantes para a esposa que a consciência dele ficava leve como brisa. Contraindo o lábio inferior num ricto, Victoria roeu a unha do indicador direito. Cansada, tonta, ansiosa; deitou sobre o chão mesmo, encolhida. O carpete cheirava a lavanda - Victoria cheirava a álcool e jasmin, como um perfume mal destilado - e contrastava com os cabelos muito louros e a pele muito alva da moça que, ainda retraída, umedeceu os lábios pensando: "E se eu fosse embora?"
Imaginou um Ricardo intimamente vexado. Não sorriu ao fazê-lo, gostava muito do médico. Mas pondereu que - "eu mesma bem sei" - conseguia coisa melhor. Ao menos alguém que não hesitasse tanto, alguém menos irresoluto. Menos lascívia e mais romance.
Imaginou-se sozinha, nas suas antigas noites insólitas de sábado, e duvidou que continuassem insólitas. Além do mais, teria de se reacostumar à vida de outrora. Sem dias inteiros ao pé do telefone, sem promessas de amor eterno; sem drinks caros e suítes presidenciais. Rien de rien. Ela, e somente ela, num apartamento modesto, sem o auxílio financeiro do seu "Romeu às avessas" - e disse isso a si mesma com risível ironia.
Talvez adotasse um gato. Talvez pedisse China In Box depois do trabalho. Talvez fizesse sessões de Sex and the City às sextas-feiras.
Alguns segundos de quietude foram suficientes para que se decidisse. Saiu do torpor, ainda tonta, em meias e calcinha, e vestiu-se. Ligou para a recepção e mandou chamar um táxi. "Não, não. É melhor eu ir caminhando..."
E saiu, incrivelmente tranqüila, em direção à padaria mais próxima e ao seu recém conquistado futuro.